O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Dóem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi à consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido às aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando. Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer. Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. (Martha Medeiros)

FIM

Não me espere para o jantar 
Não tenha a mesa posta  
Hoje não sei se vou voltar
Tão certo me ter por perto 
Meu canto soando pelos quartos 
Meu corpo bailando com estranha graça 
E minha energia, que paira no ar
Mas hoje à noite não mais terá do meu sangue, 
Meu doce vampiro 
Meu ser precisa de cheiros novos 
Cansei de você 
Cansei do seu jeito louco de ser 
Será que sou quem você achou que eu fosse?
Não me espere 
Não ponha a mesa 
Hoje não vou voltar
Vou estar por aí, e, 
Se por ventura me encontrar 
Finja que não me conhece 
Não quero lhe cumprimentar 

Lia Haikal Frota

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Não Há Vagas - Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema.


O preço do arroz
não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.

Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado: “não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.




Texto extraído do livro "O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Fases... mais uma fase!

Sou uma pessoa feita de fases, e nem mesmo de forma instintiva luto contra as minhas fases, pois sempre deixo minhas fases irem e virem, se acumularem ou se perderem dentro de mim. Nada me faz falta por muito tempo porque não consigo deixar de olhar as coisas com liberdade. Percebo as nuvens, a chuva (gosto tanto de chuva) olho o lodo sem sentir pena dele, e mesmo sem querer, vejo a fé e a falta dela com uma mesma angustia. Não gosto de meios termos, e ainda assim me contradigo a todo o momento. Apego-me, mas desapego também muito fácil. Entrego-me sem pensar à tudo que estremeça meu dia. Só aquieto um tantinho o coração no meu sufocante desespero nas minhas noites de insônia, pois, por mais que tente não me afetar, ou por mais que não perca a capacidade de sonhar, todo tipo de injustiça desmorona meus castelos. Disfarço bem, e só sou triste, porque as injustiças são muitas, são todas, e sempre formaram um cenário ao lado do caminho do trem, de manhã e a noite, na ida e na volta, de mim mesma. Queria saber observar, ler nas entrelinhas, olhar de cima pra baixo, e aprender a não esperar tanto do ser humano. Mas eu não queria isso pra não sofrer, só pra me preservar numa bolha , mas pra poder caminhar com o passo mais firme em direção aos sons que falam com a minha alma, ânsia e urgência de viver. Será que as pessoas ainda sentem medo no meio da noite, ou sou só eu que sou loka mesmo? Será que "o correr da vida embrulha tudo" como diz João Guimarães Rosa? Ou este estômago está só estragado mesmo? Será que a gente toda que anda por ai, sente, ou só caminha pra lugar algum? Será que a Lua sente sua solidão, e as pessoas, será que percebem esta solidão? E, estas mesmas "gentes" que vem e vão, quando estão quietas, e são obrigadas a conviver com esta estranha capacidade de não sentir o que está do seu lado, em nome de algo como a liberdade que nunca buscam, será que são felizes? Este tormento todo só pode ser um milagre, não é mesmo? Será que amanhã vou parar em algum momento e fechar meus olhos e ainda assim lembrar que acreditar é fácil mesmo com as contas e padrões estabelecidos nesta sociedade falida batendo na minha cabeça como um martelo? Será que acordo no meio desta noite, como os loucos, pra contar as taças vazias de sentimento, ou pra lembrar as poesias que deixei de ler, e de declamar? A todo o momento, quero lembrar quando era criança só pra sentir a doce e amarga saudade do tempo sem reembolso, e sem crédito!