O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Abandonar o paraíso é a única forma
de não esquecê-lo.
 
Carpinejar
Só é mortal
o que não vimos.
 
 
 
 
 

Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas — se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.
 
Caio Fernando de Abreu
Porque a vida segue. Mas o que foi bonito fica com toda a força. Mesmo que a gente tente apagar com outras coisas bonitas ou leves, certos momentos nem o tempo apaga. E a gente lembra. E já não dói mais. Mas dá saudade. Uma saudade que faz os olhos brilharem por alguns segundos e um sorriso escapar volta e meia, quando a cabeça insiste em trazer a tona, o que o coração vive tentando deixar pra trás.
 
Caio Fernando Abreu
Eu fico aqui
sonhando contigo
e você aí
sonhando comigo
e a gente assim
... orquestrando um encontro
se esbarrando no tempo
tropeçando no mundo
E eu aqui
abraçando o meu choro
E voce aí
abraçando teu sonho
E a gente assim
sufocando um desejo
[...] Certo homem que viveu doze anos em uma prisão me disse uma coisa, depois. Ele era, como eu, um dos clientes do meu professor. Também tinha ataques e, às vezes, ficava excitado; chorava, queria matar-se. A sua vida na cadeia foi uma vida miserável asseguro-lhes, mas não, absolutamente, sem sentido. Imaginem que seus únicos amigos eram uma aranha e uma árvore que crescia debaixo da sua janela gradeada. Mas o melhor é deixar de lado este caso e lhes contar como vim a encontrar, no ano passado, um outro homem em cuja vida houve uma circunstância bem estranha, pelo fato de ser daquelas que raramente acontecem. Esse homem fora, uma vez, conduzido com mais outros ao cadafalso, levado por uma sentença de morte. Ia ser fuzilado por causa de uma ofensa política. Vinte minutos mais tarde, porém, lhe era lida a comutação da pena de morte pela de degredo. Todavia, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos, ou talvez um quarto de hora, teve ele a convicção firme de que ia morrer. Sempre o escutei sequiosamente, quando se punha a recordar as sensações dessa ocasião e, muitas vezes, depois, eu o interrogava a respeito. Lembrava-se de tudo com perfeita exatidão e costumava dizer que lhe era impossível esquecer aqueles vinte minutos. A vinte passos do cadafalso, a cuja volta soldadesca e povaréu permaneciam, havia três postes fincados no chão, pois se tratava de vários condenados. Os três primeiros foram conduzidos até aos postes e amarrados, com a túnica dos condenados (um camisolão branco), os capuzes puxados bem por sobre os olhos para que nada vissem, sendo que então uma companhia de vários soldados se postou diante de cada poste. O meu amigo era o oitavo da lista e portanto tinha de ser um dos do terceiro turno. O padre se acercou de cada um, com a cruz. Ele só dispunha de cinco minutos mais para viver. Contou-me que aqueles cinco minutos lhe pareceram um infinito e vasto tesouro. Sentia tantas vidas naqueles cinco minutos que não precisava se incomodar com o último momento, tanto mais que havia subdividido o seu tempo da seguinte maneira: dois minutos para se despedir dos companheiros. Outros dois para o seu último pensamento geral. E, depois, o último, o quinto, para olhar em redor de si pela derradeira vez. Lembrava-se muito bem dessa extravagante subdivisão do seu tempo. Ia morrer aos vinte e sete anos, moço, forte e em plena saúde. Ao se despedir dos camaradas ocorreu-lhe perguntar a um deles qualquer coisa inadequada à circunstância, e achou muito curiosa a resposta. Após as despedidas, vieram os tais dois minutos que reservara para pensar em si mesmo. Sabia de antemão em que devia pensar. Desejava atinar, da maneira mais clara e pronta possível, como é que estava existindo agora, isto é, vivendo, e como é que dentro de três minutos seria qualquer outra coisa, alguém ou nada! E isso, como e onde? Resolvera solucionar tudo, de vez, naqueles dois únicos e últimos minutos. Não longe dali havia uma igreja cuja cúpula dourada cintilava aos raios solares. Como se lembrava de se ter posto a fixar, fascinado, aquela cúpula fulgurante de luz! Não podia tirar os olhos de lá! Era como se aqueles raios fossem já a sua outra futura natureza, visto como, dentro de três minutos, ele de um certo modo se iria fundir neles…
A incerteza e um como que sentimento de pavor pelo mistério em que já estava quase ingressando foram terríveis. Disse-me, porém, que nada foi tão cruel naquele momento como este contínuo pensamento em forma de interrogação: “E se eu não morrer? Se eu for devolvido à vida? Ah! Que eternidade! Tudo seria meu! Eu transformaria cada minuto em outras tantas eternidades! Não desperdiçaria um segundo sequer! Contaria cada minuto que fosse passando, sem desperdiçar um único!” Disse-me que esta idéia lhe veio com tal furor, que desejou ser imediatamente fuzilado, logo, logo!…
 
 
Trecho do livro 'O Idiota' de Dostoiévski