O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

terça-feira, 21 de agosto de 2012

"De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca – de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrima chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo na boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu."


Caio Fernando Abreu
(...) Afinal, não pensas, nem de longe, o mesmo que eu. Queixas-te, porque as coisas não se dispõem à tua volta como um ramo de flores, sem te dares ao trabalho de fazer seja o que for. Mas nunca eu pedi tanto: queria agir. Lembras-te de quando brincávamos ao aventureiro e à aventureira? Tu eras aquele a quem sucedem aventuras, eu aquela que as fazia suceder. E depois há uma quantidade de outras coisas que não te disse, porque levaria muitíssimo tempo a explicar-te. Seria preciso, por exemplo, poder dizer, no momento em que agia, que o que estava a fazer teria consequências... fatais. Não posso explicar-te bem...(...) Que poderei dizer-lhe? Conheço eu algumas razões para viver? Não estou, como ela, desesperado, porque nunca tinha esperado grande coisa. Estou é... espantado diante desta vida que me é dada... dada para nada. Conservo a cabeça baixa (...)

Trecho de 'A Nausea' de Jean Paul Sartre