Sou morena e magrinha, mas não como qualquer polinésia, como
queria Cecília, e também nada tenho de Oriente: sou mais britânica na minha
morenez, sou mais Brontë, qualquer das três. Meu pequeno coração foi gestado
numa áspera charneca, gasto os invernos tentando descobrir infrutífera um
caminho qualquer sobre a neve capaz de transformar todos os caminhos num único
descaminho gelado e sem porto, tivesse nascido cem anos atrás me fanaria em
brancas rendas e hemoptises escarlates, menos por doença que por delicadeza,
insuportáveis que são para meus olhos os escarpados penedos das tardes ou a luz
clara do meio-dia, envolta em penumbras que amenizassem o duro contorno das
coisas viventes, assim me fanaria, com a magra mão translúcida estendida para o
aro metálico dos óculos pousados sobre a capa de couro de um romance antigo,
cheio de paixões impossíveis. Frente ao espelho, é com recato que tranço meus
longos cabelos, enquanto a ponta de meus frágeis dedos de unhas curtas, às
vezes roídas, acaricia o roxo das olheiras, herança de solitárias insônias.
Depois busco um lugar junto à janela, pouso o rosto sobre uma das mãos e com a
outra vou traçando riscos tristes pelas vidraças sempre embaçadas, por vezes
grafo nomes de lugares e gentes que nunca conhecerei, sóis fanados atrás de
nuvens débeis, flores doentias, estrelas opacas, talos quebradiços, plátanos
desfolhados, olhos profundos, rostos apoiados em mãos magras como as minhas,
identifico enquanto meus dedos riscam e riscam e riscam sem parar o inefável.
De mancebos e malícias pouco sei, meu precário aprendizado da carne limita-se
àquela gosma gelada que um Estudante certo dia depositou entre minhas coxas
virginais, contra um muro descascado e cheio de brutais palavrões gravados a
prego, numa sépia tarde outoniça. Até a chegada das regras seguintes, temi que
houvesse plantado sua áspera semente dentro de mim, e de cada vez que cerrava
as pálpebras tornava a sentir seu bafo de fera no cio contra meu colo pálido,
as pedras do muro ferindo minhas espáduas, a vergonhosa corrida com as meias
soquete desabando sobre os sapatos de verniz, os inúmeros banhos e todos os
perfumes, todas as colônias, sabonetes, essências que passei pelo corpo para
arrancar de minha pele aquele cheiro descarado de animal. Prefiro os cheiros
fanados, as rosas quase murchas, e nos transes mais dolorosos sempre fui eu a
banhar os cadáveres familiares, cortando-lhes os cabelos e as unhas com
infinito carinho, de certa forma meus mortos todos foram também meus filhos
quando os polia esmerada para que São Pedro não lhes pusesse defeito ao baterem
às portas celestes, que nada teriam contra mim no Reino dos Céus até minha
partida que, rogo constantemente, há de ser breve. Mas até hoje persiste o
cheiro, embora na chegada do fluxo tenha me embriagado feito demente naquele
sangue que assegurava a permanência de minha pureza, deixei-me sangrar durante
várias horas, empapando lençóis e roupas íntimas, até estar segura de que nem a
mais ínfima gota do líquido vital daquele selvagem havia maculado minhas entranhas:
eu as reivindico brancas como o linho das fronhas, como o cretone dos lençóis,
como a renda destas cortinas que o vento sopra contra as violetas nessas tardes
em que o sol demora a partir e o céu inteiro tinge-se de lilás. Não, não
ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as
páginas de um livro, definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no
canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para
que se possa refrescar o rosto, mas se tocada por dedos bruscos num segundo me
estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada. Tenho pensado se não
guardarei indisfarçáveis remendos das muitas quedas, dos muitos toques, embora
sempre os tenha evitado aprendi que minhas delicadezas nem sempre são suficientes
para despertar a suavidade alheia, e mesmo assim insisto - meus gestos e
palavras são magrinhos como eu, e tão morenos que, esboçados à sombra, mal se
destacam do escuro, quase imperceptível me movo, meus passos são inaudíveis
feito pisasse sempre sobre tapetes, impressentida, mãos tão leves que uma
carícia minha, se porventura a fizesse, seria mais branda que a brisa da
tardezinha. Para beber, além do chá com une &irme de lait, raramente
admito um cálice de vinho, mas que seja branco para não me entontecer, e que
seja seco para não esbrasear em excesso minha garganta em ardores que, temo,
poderiam descontrolar-se além do limite imposto pela pudicícia, e para vestir,
além do branco absoluto, admito apenas o cinza e o bege, raramente o preto,
demasiado dramático para quem busca integrar-se ao fundo, não destacar-se,
poucas vezes ouso o bordô, contudo me agrade o sangue coagulado de seus tons,
lembrando dores para sempre pacificadas na sua estagnação, e nunca me atrevi
aos azuis, iluminados demais para minha severidade. Nas folhas que datilografo
como secretária, os chefes jamais detectaram uma rasura sequer, uma violação de
margem, um toque mais nítido ou esmaecido, sou sempre precisa, caracteres
negros sobre o branco impecável, e isso é tudo. Recebo modesta os elogios, vou
duas vezes ao banheiro cada dia, ao chegar e ao partir, quando não tenho
serviço cruzo os braços sobre o busto escasso e simplesmente permaneço, existo
mais profundamente assim, quando silente, ou abro discreta certo livro de
poemas líricos para saborear algum verso enquanto contemplo as alamedas
estendidas atrás das janelas. Mas desde que, há duas semanas, uma cigana
desvendou as fracas linhas das palmas de minha mão, pouco sossego encontro até
em meu próprio sossego: dois amores, ela apontou, um já passado, e com amargura
localizei na memória aquele sôfrego Estudante, e outro em breve por chegar.
Desde então, me desconheço. Abreviaram-se-me as idas ao banheiro para molhar os
pulsos e os lóbulos das orelhas, animando a circulação que se me estanca nas
veias, por vezes olvido a torneira aberta e surpreendo-me a odiar minhas
próprias tranças, as manchas roxas sob os olhos e tudo que me torna assim,
fugaz. Mal posso conter um susto investigando o porte de cada homem que se
aproxima, em cada esquina que dobro, em cada ônibus que tomo para ir e vir,
sinto que busco prometido e me detesto por essa inquietação febril, pelo amor
que desconheço e mal consigo supor, tão parca é minha vida de memórias ou
medidas. Esforço-me por dar-lhe pinceladas tênues, não me atrevo aos óleos nem
aos acrílicos, é nos guaches e sobretudo nas aquarelas que procuro o verde
esmaecido de sua tez, mas por vezes alguma coisa se alvoroça e me surpreendo
alucinada, incontrolável, a chafurdar em tintas fortes, berrantes cores
primárias, formas toscas, símbolos sensuais, e é então que mergulho em banhos
gelados no meio da noite para apaziguar a carne incompreensível, fremente qual
Teresa d'Ávila, afogada entre lençóis, as palavras da cigana me embalando feito
uma berceuse, imagino se não será o próprio Senhor este que se aproxima, e não
conheço. Em cada junho, sei que não suportarei o próximo agosto, me debato
elaborando aquela futura tarde gris para encontrá-lo - não aqui, entre
torpezas, mas numa outra dimensão de luz maior, além de meu próprio corpo,
irmão-burro aprisionado pelos instintos, num espaço discreto e contido como eu
mesma venho sendo através destas quase três décadas que, álgida, sobrepujei. Sobrevivo
a cada manhã quando, cruzando as portas e corredores que me conduzem às ruas
intermináveis, imagino sempre que sou invisível para cada um dos que passam.
Ninguém suspeita de meu segredo, caminho severa pelas calçadas, olhos baixos
para que minha sede não transpareça: ah sou tão morena e magrinha que ninguém
me adivinha assim como tenho andado - castamente cinzelada no topo deste morro
onde os ventos não cessam jamais de uivar, tendo entre as mãos, como quem
segura lírios maduros dos campos, uma espera tão reluzente que já é certeza.
Caio Fernando Abreu in Morangos Mofados
Retirado do magnífico blog: http://semamorsoaloucura.blogspot.com.br/2011/10/3x4-liege.html