O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

sexta-feira, 24 de junho de 2011

"Narrativas da Sé" - Cena 1

"Estudo de cena: o Capital e a Religião" - Cena 1

"Estudo de cena: o Capital e a Religião" - Cena 4

 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,  
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,  
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, 
O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-província, 
O que fui de amarem-me e eu ser menino, 
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o acho... ) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,  
Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,  
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... 
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! 
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, 
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, 
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,  
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . . 
  
Pára, meu coração! 
Não penses!  Deixa o pensar na cabeça!  
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!   
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... 


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

                                                                              

Aniversário - Álvaro de Campos