O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

sábado, 29 de setembro de 2012

O MAIS QUE PERFEITO


Ah, quem me dera
Ir-me contigo agora
A um horizonte firme, comum
Embora amar-te
Ah, quem me dera amar-te
Sem mais ciúmes
De alguém em algum lugar
Que nem presumes
Ah, quem me dera ver-te
Sempre a meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais cuidado
Ah, quem me dera ter-te
Morar-te até morrer-te
Muitas vezes, e não tenho como entender isso porque acontece sem planejar, e é com todo mundo que anda por ai, todos nós permitimos que nossa cabeça e vida mudem por alguma coisa, uma faísca, uma coceira mais estúpida do que feliz, um tempo ou companhia leve, um momento besta de riso fácil... eu passei boa parte da minha vida fugindo de qualquer tipo de prisão pra nunca ter a sensação sufocante de estar em um poço, de depender de algo, de um sonho só ou de alguém... e nesse meu seguir fui capaz de dizer 'te amo' em um dia e 'fique longe de mim' em outro... uma funda inconstância. E não sei explicar. Em algumas tardes é o cheiro da flor que me toca e em outras, a chuva. E o plano sempre é sair ilesa. Mas quem pode definir o que fere dentro da cabeça? Qual martelo bate mais forte? Que palavra acorda o estômago? ... o porque de alguma fome? É como uma fome esta quase necessidade de não se sentir presa a nada ou ninguém! Quero sorrir num dia sem a obrigação de sorrir em outro do mesmo jeito ou pela mesma companhia ou coração. E a verdade é que cócegas, ou uma ida ao shopping pouco satisfazem, e nunca por muito tempo, um espírito como o meu, inquieto e questionador... 'nada deve durar muito e ninguém tem de durar demais no caminho de ninguém' porque é a lógica da vida descrita em todos os poemas e livros que ao fim da leitura apertamos contra o peito em meio a um sussurro. Tem de ser assim... meus melhores livros foram assim! ... porque se a gente entrega a alma ela deixa de ser alma e numa confusão nas suas próprias letras, vira lama. Eu to quase curada e hoje minha raiva é bem menor. Porque deveria querer testar meus limites se o silêncio e a distância são tão mais compensadores, e até confortantes? Eu tenho uma fera dentro de mim e um monte de palavras a serem domesticadas. Me deixe quieta que pra mim no fim das contas tudo sempre passa, e depois que passa eu não quero que volte, simplesmente porque passou, e porque tudo pra ter sentido, ou ter mesmo razão de ser, tem de ser alimentado e cuidado. A vida nos cobra constância e sempre me dei muito mal com qualquer cobrança. Me acostumei com este sono e a verdade é que não existe mais nenhuma fonte nova de histórias no dia de amanhã porque conheço seus passos e sei onde sua pouca fé pode me levar. Não quero que ninguém me entenda e nem que me respondam porque ainda dói um pouco mais do que deveria doer minhas tristezas... só quero que doa o máximo que puder toda a minha solidão porque é só assim que se exorciza uma alma perdida e cansada de esperar que a olhem no meio... 

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Para quem partiu...

[...] você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente...

Caio Fernando Abreu

Por todo amor que não sei sentir...

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Pálpebras de Neblina



Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas 'Eu sofro'. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/ que era sofrer ?" Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban - filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja.
E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?


Caio Fernando Abreu in Pequenas Epifanias 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012


Sou morena e magrinha, mas não como qualquer polinésia, como queria Cecília, e também nada tenho de Oriente: sou mais britânica na minha morenez, sou mais Brontë, qualquer das três. Meu pequeno coração foi gestado numa áspera charneca, gasto os invernos tentando descobrir infrutífera um caminho qualquer sobre a neve capaz de transformar todos os caminhos num único descaminho gelado e sem porto, tivesse nascido cem anos atrás me fanaria em brancas rendas e hemoptises escarlates, menos por doença que por delicadeza, insuportáveis que são para meus olhos os escarpados penedos das tardes ou a luz clara do meio-dia, envolta em penumbras que amenizassem o duro contorno das coisas viventes, assim me fanaria, com a magra mão translúcida estendida para o aro metálico dos óculos pousados sobre a capa de couro de um romance antigo, cheio de paixões impossíveis. Frente ao espelho, é com recato que tranço meus longos cabelos, enquanto a ponta de meus frágeis dedos de unhas curtas, às vezes roídas, acaricia o roxo das olheiras, herança de solitárias insônias. Depois busco um lugar junto à janela, pouso o rosto sobre uma das mãos e com a outra vou traçando riscos tristes pelas vidraças sempre embaçadas, por vezes grafo nomes de lugares e gentes que nunca conhecerei, sóis fanados atrás de nuvens débeis, flores doentias, estrelas opacas, talos quebradiços, plátanos desfolhados, olhos profundos, rostos apoiados em mãos magras como as minhas, identifico enquanto meus dedos riscam e riscam e riscam sem parar o inefável. De mancebos e malícias pouco sei, meu precário aprendizado da carne limita-se àquela gosma gelada que um Estudante certo dia depositou entre minhas coxas virginais, contra um muro descascado e cheio de brutais palavrões gravados a prego, numa sépia tarde outoniça. Até a chegada das regras seguintes, temi que houvesse plantado sua áspera semente dentro de mim, e de cada vez que cerrava as pálpebras tornava a sentir seu bafo de fera no cio contra meu colo pálido, as pedras do muro ferindo minhas espáduas, a vergonhosa corrida com as meias soquete desabando sobre os sapatos de verniz, os inúmeros banhos e todos os perfumes, todas as colônias, sabonetes, essências que passei pelo corpo para arrancar de minha pele aquele cheiro descarado de animal. Prefiro os cheiros fanados, as rosas quase murchas, e nos transes mais dolorosos sempre fui eu a banhar os cadáveres familiares, cortando-lhes os cabelos e as unhas com infinito carinho, de certa forma meus mortos todos foram também meus filhos quando os polia esmerada para que São Pedro não lhes pusesse defeito ao baterem às portas celestes, que nada teriam contra mim no Reino dos Céus até minha partida que, rogo constantemente, há de ser breve. Mas até hoje persiste o cheiro, embora na chegada do fluxo tenha me embriagado feito demente naquele sangue que assegurava a permanência de minha pureza, deixei-me sangrar durante várias horas, empapando lençóis e roupas íntimas, até estar segura de que nem a mais ínfima gota do líquido vital daquele selvagem havia maculado minhas entranhas: eu as reivindico brancas como o linho das fronhas, como o cretone dos lençóis, como a renda destas cortinas que o vento sopra contra as violetas nessas tardes em que o sol demora a partir e o céu inteiro tinge-se de lilás. Não, não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto, mas se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada. Tenho pensado se não guardarei indisfarçáveis remendos das muitas quedas, dos muitos toques, embora sempre os tenha evitado aprendi que minhas delicadezas nem sempre são suficientes para despertar a suavidade alheia, e mesmo assim insisto - meus gestos e palavras são magrinhos como eu, e tão morenos que, esboçados à sombra, mal se destacam do escuro, quase imperceptível me movo, meus passos são inaudíveis feito pisasse sempre sobre tapetes, impressentida, mãos tão leves que uma carícia minha, se porventura a fizesse, seria mais branda que a brisa da tardezinha. Para beber, além do chá com une &irme de lait, raramente admito um cálice de vinho, mas que seja branco para não me entontecer, e que seja seco para não esbrasear em excesso minha garganta em ardores que, temo, poderiam descontrolar-se além do limite imposto pela pudicícia, e para vestir, além do branco absoluto, admito apenas o cinza e o bege, raramente o preto, demasiado dramático para quem busca integrar-se ao fundo, não destacar-se, poucas vezes ouso o bordô, contudo me agrade o sangue coagulado de seus tons, lembrando dores para sempre pacificadas na sua estagnação, e nunca me atrevi aos azuis, iluminados demais para minha severidade. Nas folhas que datilografo como secretária, os chefes jamais detectaram uma rasura sequer, uma violação de margem, um toque mais nítido ou esmaecido, sou sempre precisa, caracteres negros sobre o branco impecável, e isso é tudo. Recebo modesta os elogios, vou duas vezes ao banheiro cada dia, ao chegar e ao partir, quando não tenho serviço cruzo os braços sobre o busto escasso e simplesmente permaneço, existo mais profundamente assim, quando silente, ou abro discreta certo livro de poemas líricos para saborear algum verso enquanto contemplo as alamedas estendidas atrás das janelas. Mas desde que, há duas semanas, uma cigana desvendou as fracas linhas das palmas de minha mão, pouco sossego encontro até em meu próprio sossego: dois amores, ela apontou, um já passado, e com amargura localizei na memória aquele sôfrego Estudante, e outro em breve por chegar. Desde então, me desconheço. Abreviaram-se-me as idas ao banheiro para molhar os pulsos e os lóbulos das orelhas, animando a circulação que se me estanca nas veias, por vezes olvido a torneira aberta e surpreendo-me a odiar minhas próprias tranças, as manchas roxas sob os olhos e tudo que me torna assim, fugaz. Mal posso conter um susto investigando o porte de cada homem que se aproxima, em cada esquina que dobro, em cada ônibus que tomo para ir e vir, sinto que busco prometido e me detesto por essa inquietação febril, pelo amor que desconheço e mal consigo supor, tão parca é minha vida de memórias ou medidas. Esforço-me por dar-lhe pinceladas tênues, não me atrevo aos óleos nem aos acrílicos, é nos guaches e sobretudo nas aquarelas que procuro o verde esmaecido de sua tez, mas por vezes alguma coisa se alvoroça e me surpreendo alucinada, incontrolável, a chafurdar em tintas fortes, berrantes cores primárias, formas toscas, símbolos sensuais, e é então que mergulho em banhos gelados no meio da noite para apaziguar a carne incompreensível, fremente qual Teresa d'Ávila, afogada entre lençóis, as palavras da cigana me embalando feito uma berceuse, imagino se não será o próprio Senhor este que se aproxima, e não conheço. Em cada junho, sei que não suportarei o próximo agosto, me debato elaborando aquela futura tarde gris para encontrá-lo - não aqui, entre torpezas, mas numa outra dimensão de luz maior, além de meu próprio corpo, irmão-burro aprisionado pelos instintos, num espaço discreto e contido como eu mesma venho sendo através destas quase três décadas que, álgida, sobrepujei. Sobrevivo a cada manhã quando, cruzando as portas e corredores que me conduzem às ruas intermináveis, imagino sempre que sou invisível para cada um dos que passam. Ninguém suspeita de meu segredo, caminho severa pelas calçadas, olhos baixos para que minha sede não transpareça: ah sou tão morena e magrinha que ninguém me adivinha assim como tenho andado - castamente cinzelada no topo deste morro onde os ventos não cessam jamais de uivar, tendo entre as mãos, como quem segura lírios maduros dos campos, uma espera tão reluzente que já é certeza.

Caio Fernando Abreu in Morangos Mofados

sábado, 22 de setembro de 2012


Me entende, eu não quis, eu não quero, eu sofro, eu tenho medo, me dá a tua mão, entende, por favor. Eu tenho medo, merda! Ontem chorei. Por tudo que fomos. Por tudo o que não conseguimos ser. Por tudo que se perdeu. Por termos nos perdido. Pelo que queríamos que fosse e não foi. Pela renúncia. Por valores não dados. Por erros cometidos. Acertos não comemorados. Palavras dissipadas. Versos brancos. Chorei pela guerra cotidiana. Pelas tentativas de sobrevivência. Pelos apelos de paz não atendidos. Pelo amor derramado. Pelo amor ofendido e aprisionado. Pelo amor perdido. Pelo respeito empoeirado em cima da estante. Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda- roupa. Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados. Pela culpa. Toda a culpa. Minha. Sua. Nossa culpa. Por tudo que foi e voou. E não volta mais, pois que hoje é já outro dia. Chorei. Apronto agora os meus pés na estrada. Ponho-me a caminhar sob sol e vento. Vou ali ser feliz e já volto.

Caio Fernando Abreu

sábado, 8 de setembro de 2012


Eu queria dizer que não quero que pense que você é tudo, que é todo o motivo da minha irritação, da minha falta de sono ou da minha alegria. Nunca disse que seria! Você foi por um momento uma parte de mim... uma parte que hoje foi embora. Em alguns dias ainda é uma parte que lateja. Uma parte que ainda esta aqui dentro vivendo escondido como um intruso, e que me incomoda porque não gosto que invadam minha intimidade. Uma parte que me cansa porque sei que preciso arrumar um motivo qualquer pra desculpar sua presença em mim, e muitas vezes não consigo, e nestas horas minha cabeça gira e os dias ficam longos e reais. Sua parte, esta parte lembrança, ainda se mexe aqui dentro, e é o esboço ou prova concreta do que eu deveria ser e não consigo. O que eu tenho me esforçado pra ser, mas, muitas vezes, não consigo e me perco. Ando de um lado pra outro, sento e levanto, passo as mãos na memória pra afastar seu rosto em mim, refaço mentalmente suas palavras, retomo e alimento toda a raiva que seu silêncio me faz sentir, fecho o livro, os olhos, e contraio o estômago pra transformar em dor física a dor da alma. Nesse exercício estúpido e defeituoso de odiar-te aos poucos, de me enganar, ou enganar o dia seguinte, sinto menos a sua falta, e a sua covardia. 
[...] Não pense que não segui, não pense que não continuo seguindo. Caminhando  lentamente, mas, sempre em frente. Eu falei que continuaria. E é o que estou fazendo. Só que ainda escrevo. Não devia nunca mais escrever, mas escrevo. E ainda penso. Quase sempre sem querer. Acontece assim, por vezes no meio da noite, em meio a uma poesia ou música, por vezes na fumaça do cigarro e até no cheiro do café... aqui e ali me aparece você. Mesmo que eu não queria, surge por vezes demais uma lembrança, ou muitas, várias e várias, e sempre, todas ruins. Tão triste depois de tanto bem querer só terem sobrado lembranças ruins. Tenho gravadas as lembranças e palavras ruins porque são as mais lentas de esquecer, e as mais nuas de sentido, e as mais duras de lembrar, e é nessas horas em que elas voltam que eu escrevo. Eu tomo um lápis - prefiro os de ponta grossa e gastos - um gole de piedade, e escrevo muito, e muitas vezes compulsoriamente. Desesperadamente. E sinto raiva e escrevo que estou com raiva. Escrevo pra esquecer e escrevo pra viver. Escrevo porque seu coração é frio, porque você me fez covarde, e agora não tenho coragem nenhuma mais dentro de mim. Escrevo porque você não está aqui e não faz parte de nada, e eu ainda estou e faço parte de tudo. Ah, mas esqueça isso, esqueça essa parte! ... 

De Carla para Carla 
[...] E eu que achava delicioso ostentar para o mundo a magnitude de te amar, não percebia como era leve o sono da inveja. Hoje vivo um amor antigo, menos voraz e muito mais maduro e escondo-o no escaninho da minh'alma em troca de carregá-lo para o resto de minha vida, numa reciprocidade sublime!

Ramiles Nery
Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso.

Clarice Lispector
“Fazem meses que não te vejo, ‘que não falo com você’. Não sei se você está bem, se está estudando, se está gostando de outro alguém ou se às vezes ainda sonha comigo. Nada mais sei sobre você, além do que sobrou. Recentemente vi umas fotos suas, o corte de cabelo ainda era o mesmo, o físico, o estilo de roupas. Mas tinha algo diferente, eu sei que tinha, porém, como eu poderia explicar? Era algo no seu olhar castanho escuro, como se faltasse algo por dentro de você. Era o formato dos traços do seu sorriso, como se tivesse perdido um pedaço de você… Então lembrei, talvez o que faltava, era o pedaço de você que eu levei comigo, e não consegui te devolver.”

Caio Fernando Abreu

domingo, 2 de setembro de 2012


Homem tem dificuldades para se declarar, mas faz o impossível para ser denunciado. Mulher espera declarações, mas não quando está se arrumando. Homem reclama dos atrasos, mas também detesta quem chega antes. Mulher odeia a impaciência do homem, mas também se enerva com a letargia. Homem não resiste a um videogame, mas também não deseja ser chamado de criança. Mulher abusa dos diminutivos, mas também diz que cresceu. Homem pede desculpa quando machuca, mas não aceita desculpa quando machucado. Mulher se desculpa antes de errar, depois não se lembra. Mulher desvia o assunto quando se desinteressa, mas não gosta que não prestem atenção nela. Homem não gosta de ser interrompido, mas vive interrompendo. Mulher admira poesia, mas não no sexo. Homem procura agradar a mulher ao recitar poesia no sexo. Homem não gosta de unhas vermelhas, mas fica excitado com elas num filme pornô. Mulher gosta de unhas vermelhas porque detesta filme pornô. Mulher anseia pelas flores, mas nunca tem um vaso para colocá-las. Homem gosta de mandar flores, mas desiste na hora de escrever o cartão. E ambos não gostam do meio-termo.”


Fabrício Carpinejar
Uma mulher não perdoa uma única coisa no homem: que ele não ame com coragem!
Pode ter os maiores defeitos, atrasar-se para os compromissos ...
Qualquer coisa é admitida, menos que não ame com coragem.
Amar com coragem não é viver com coragem.
É bem mais do que estar aí...
Amar com coragem não é questão de estilo, de opinião.
Amar com coragem é caráter.
Vem de uma incompetência de ser diferente.
Amar para valer, para dar torcicolo.
Não encontrar uma desculpa ou um pretexto para se adaptar.
Não usar atenuantes como “estou confuso”.
Amar com fúria, com o recalque de não ter sido assim antes.
Amar decidido, obcecado...como quem troca de identidade e parte a um longo exílio....
Amar como quem volta de um longo exílio.
Amar quase que por, por bebedeira...
Amar desavisado ... amar desatinado, pressionando...
Amar mais do que é possível lembrar.
Amar com coragem... só isso!

Fabrício Carpinejar