O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Lua Adversa - Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Ladeira da Memória - Anhangabaú


A memória como intermediário cultural
O que me contaram os velhos sobre sua cidade? Cada geração tem, de sua cidade, a memória de acontecimentos que são pontos de amarração de sua história. O caudal de lembranças, correndo sobre o mesmo leito, guarda episódios notáveis que já ouvimos muitas vezes de nossos avós. A passagem do cometa Halley com sua cauda luminosa varrendo o céu paulistano, os mata-mosquitos de Oswaldo Cruz nos bairros varzeanos, a gripe espanhola, as peripécias de Meneghetti, ladrão simpático que roubava dos ricos para dar aos pobres... O vôo do Zeppelin sobre o Viaduto... O Dia da Vitória, o IV Centenário de São Paulo, as festas de São Vito e Nossa Senhora da Aqueropita, os corsos do carnaval na avenida Paulista, os bailes do 1º de Maio no Parque Antártica...
Mas a memória rema contra a maré; o meio urbano afasta as pessoas que já não se visitam, faltam os companheiros que sustentavam as lembranças e já se dispersaram. Daí a importância da coletividade no suporte da memória. Quando as vozes das testemunhas se dispersam, se apagam, nós ficamos sem guia para percorrer os caminhos da nossa história mais recente: quem nos conduzirá em suas bifurcações e atalhos? Fica-nos a história oficial: em vez da envolvente trama tecida à nossa frente, só nos resta virar a página de um livro, unívoco testemunho do passado.
A lembrança paulistana elegeu momentos que nos tocaram de perto, escolho alguns que mereceram repetidas evocações: o anarquismo do início do século XX, a revolução de Isidoro, a Coluna Prestes em 1932, as duas grandes guerras, Getúlio Vargas e o trabalhismo, Ademar x Jânio, os famosos entreveros de comunistas e integralistas. Estava-se construindo a Catedral e suas pedras eram usadas nessas brigas de rua (parece que um dos esportes mais apreciados pelos paulistanos do centro eram essas trocas de pedras).
Entrevistei uma professora comunista que subia nos andaimes para apedrejar. E um integralista que era um de seus alvos, entre a rua Direita e a praça da Sé. São pontos de vista diversos, oposições constituintes da História... As testemunhas do fato histórico são de uma riqueza insubstituível; ouçamos aquelas da repressão dos anos de 1960.
Um jovem que nesse tempo era uma criança lembra momentos de confusão e de apuros em sua casa para esconder um militante procurado pela polícia. Ele se lembra de móveis arrastados, camas improvisadas, cochichos noturnos e, por emio de tais fatos domésticos, está nos revelando que centenas de famílias esconderam revolucionários, simpatizando ou não com suas idéias.
As lembranças se apóiam nas pedras da cidade. Se o espaço, para Merleau-Ponty, é capaz de exprimir a condição do ser no mundo, a memória escolhe lugares privilegiados de onde retira sua seiva. Em primeiro lugar, a casa materna; tal como aparece nas biografias, é o centro geométrico do mundo e a cidade cresce a partir dela em todas as direções. Dela partem as ruas, as calçadas onde se desenrolou nossa vida, o bairro. Sons que voltam, sons que não voltam mais, pregões, cantilenas que recolhi e procurei gravar em pauta musical.


Ecléa Bosi

Veja bem - Jorge Furtado

Coisas dos outros

Tantos poemas que perdi.
Tantos que li, ou ouvi de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
... era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário,

cara pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz,

talvez querendo a glória,
ou outra cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
Que me perdi!

In: Cartas de Ana Cristina César

''Cada busca inútil me traz uma impressão longínqua de despedaçar-se: chegou-se a algum lugar, afinal, pois chegamos quando nos dispomos a continuar; mas a que custo! Seria talvez mais desejável para nós, gente, não chegar, achando quem sabe um último suspiro depois de um último passo.
Cada noite que desce sobre uma espera vã traz-me à boca um gosto de vinagre, aos ouvidos um som qualquer que ensurdeça. Ninguém se disse adeus, e na ausência de luz alguém está morrendo sozinho.
Cada vez que não morremos parece-me que demos mais um passo para trás, progredimos no sentido inverso, chegamos, pois que nos levantamos para prosseguir. E nestes dias de indolência, oco, ânsia oculta, uma sensação de inteminabilidade sobe, sobe, pelas veias sobe. Nada. Esta falta de segredo é uma chegada no seu verdadeiro significado: chegada é sempre escala; ponto para respirar; pela penúltima vez, quem sabe.
Esta brisa marinha semimagica que entra tão sub-reptciamente pela janela denuncia o quê? ou liquefaz meus suspiros em mistério tátil e tácito. Meu Deus, de novo a brisa a me desalienar e desalinhar, despertando o borbulhar que o ano inteirinho pressentiu. Suspirosa e oleosa, uma tonta. Ligo o radio. Será que eu fui engolida inteira? Faz de conta que a minha digestão é facil, que as grandes partes se derreteram já, que os ossos cuspidos estão arrumados, insensíveis e ressecando. Ouvi dizer, li em algum lugar: Ana é idiota. Se conspirassem contra mim, talvez eu fosse. A noite despencou e quebrou três estrelas.''

Cecília Meireles

“Por mim, e por vós, e por mais aquilo que está onde as outras coisas nunca estão, deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: quero solidão".

Trecho de carta de Van Gogh à seu irmão Théo

Uma melhoria na minha vida - por acaso não a desejaria, por acaso não precisaria? Gostaria de melhorar bem mais. Mas precisamente porque o desejo, tenho medo de "remédios piores que a doença".