O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida?
Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa.
É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera

Somente no amor gostamos de ver alguém mais feliz do que nós mesmos...

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ladeira da Memória - Anhangabaú


A memória como intermediário cultural
O que me contaram os velhos sobre sua cidade? Cada geração tem, de sua cidade, a memória de acontecimentos que são pontos de amarração de sua história. O caudal de lembranças, correndo sobre o mesmo leito, guarda episódios notáveis que já ouvimos muitas vezes de nossos avós. A passagem do cometa Halley com sua cauda luminosa varrendo o céu paulistano, os mata-mosquitos de Oswaldo Cruz nos bairros varzeanos, a gripe espanhola, as peripécias de Meneghetti, ladrão simpático que roubava dos ricos para dar aos pobres... O vôo do Zeppelin sobre o Viaduto... O Dia da Vitória, o IV Centenário de São Paulo, as festas de São Vito e Nossa Senhora da Aqueropita, os corsos do carnaval na avenida Paulista, os bailes do 1º de Maio no Parque Antártica...
Mas a memória rema contra a maré; o meio urbano afasta as pessoas que já não se visitam, faltam os companheiros que sustentavam as lembranças e já se dispersaram. Daí a importância da coletividade no suporte da memória. Quando as vozes das testemunhas se dispersam, se apagam, nós ficamos sem guia para percorrer os caminhos da nossa história mais recente: quem nos conduzirá em suas bifurcações e atalhos? Fica-nos a história oficial: em vez da envolvente trama tecida à nossa frente, só nos resta virar a página de um livro, unívoco testemunho do passado.
A lembrança paulistana elegeu momentos que nos tocaram de perto, escolho alguns que mereceram repetidas evocações: o anarquismo do início do século XX, a revolução de Isidoro, a Coluna Prestes em 1932, as duas grandes guerras, Getúlio Vargas e o trabalhismo, Ademar x Jânio, os famosos entreveros de comunistas e integralistas. Estava-se construindo a Catedral e suas pedras eram usadas nessas brigas de rua (parece que um dos esportes mais apreciados pelos paulistanos do centro eram essas trocas de pedras).
Entrevistei uma professora comunista que subia nos andaimes para apedrejar. E um integralista que era um de seus alvos, entre a rua Direita e a praça da Sé. São pontos de vista diversos, oposições constituintes da História... As testemunhas do fato histórico são de uma riqueza insubstituível; ouçamos aquelas da repressão dos anos de 1960.
Um jovem que nesse tempo era uma criança lembra momentos de confusão e de apuros em sua casa para esconder um militante procurado pela polícia. Ele se lembra de móveis arrastados, camas improvisadas, cochichos noturnos e, por emio de tais fatos domésticos, está nos revelando que centenas de famílias esconderam revolucionários, simpatizando ou não com suas idéias.
As lembranças se apóiam nas pedras da cidade. Se o espaço, para Merleau-Ponty, é capaz de exprimir a condição do ser no mundo, a memória escolhe lugares privilegiados de onde retira sua seiva. Em primeiro lugar, a casa materna; tal como aparece nas biografias, é o centro geométrico do mundo e a cidade cresce a partir dela em todas as direções. Dela partem as ruas, as calçadas onde se desenrolou nossa vida, o bairro. Sons que voltam, sons que não voltam mais, pregões, cantilenas que recolhi e procurei gravar em pauta musical.


Ecléa Bosi

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