"Peço-lhes imaginarem o camponês francês do século dezoito ou, melhor, aquele que conhecem, pois sempre permanece o mesmo: mudou sua condição, mas não seu estado de espírito. Vejam-no tal como os documentos que citei o descrevem, tão apaixonado pela terra que gasta todas as suas economias para comprá-la e a compra a qualquer preço. Para adquiri-la, precisa primeiro pagar um direito não ao governo, mas a outros proprietários da vizinhança que lhe são tão estrangeiros quanto a administração dos negócios públicos e são quase tão impotentes quanto ele. Finalmente a possui: nela sepulta seu coração ao mesmo tempo que suas sementes. Este pedacinho do solo que lhe pertence neste vasto universo enche-o de orgulho e de independência. Surgem entretanto os mesmos vizinhos que o arrancam ao seu campo obrigando-o a ir trabalhar alhures sem salário. Se quiser defender suas sementes contra a caça, fica impedido de fazê-lo pelos mesmos homens e os mesmos esperam-no na travessia do rio para exigir um direito de pedágio. Encontra-os novamente no mercado onde lhe vendem o direito de vender seus próprios gêneros alimentícios e quando, de volta a casa, quer empregar para seu uso a sobra de seu trigo – este trigo que cresceu sob os seus olhos e pelas suas mãos – só pode fazê-lo após ter mandado moê-lo no moinho e cozê-lo no forno destes mesmos homens. Uma parte da renda de sua pequena posse é destinada a dar rendas para eles e essas rendas são imprescindíveis e irresgatáveis. Qualquer coisa que faça sempre encontra no seu caminho esses vizinhos incômodos que perturbam sua alegria, dificultam seu trabalho, comem seus produtos; e quando termina com eles, outros, vestidos de preto [representantes da Igreja], apresentam-se, tiram-lhe a maior parte de sua colheita. Imaginem a condição, as necessidades, o caráter, as paixões deste homem e calculem, se conseguirem, o amontoado de ódio e inveja que se juntou em seu coração. O feudalismo continuou sendo a maior de todas as nossas instituições civis quando deixou de ser uma instituição política. Assim reduzida, provocava ainda muito mais ódio e esta verdade permite-nos dizer que ao destruir uma parte das instituições da Idade da Idade Média tornaram cem vezes mais odioso o que delas sobrava."
(TOCQUEVILLE, A. de. O antigo regime e a revolução. 3ª ed. Brasília: UNB, 1989. p. 75-76.)
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